Não importa onde estamos, numa mesa de bar ou no divã do analista, nossa mente nunca para e nossos medos e desejos nunca nos abandonam. Nem por um instante nos separamos do que realmente somos e, por mais difícil que seja, não controlamos cem por cento nossas atitudes. Se Freud, após 40 anos de estudo da mente humana, continuou com várias dúvidas sobre o ser humano, quem sou eu ou você para julgar as “crises histéricas” da melhor amiga? Só Freud explica!?!
Coisas simples que todos vivemos,pensamos,sentimos e nem sempre conseguimos partilhar. Assuntos, temas, extraídos da minha experiência clínica e do meu cotidiano. Em alguns você pensará: tô fora... Em outros: tô dentro...

terça-feira, 10 de fevereiro de 2009

MI NE VOLAS MORTI - Parte II

Sou chamada para atender no P.S. um paciente que “não fala coisa com coisa, está confuso, agitado”.
Chego e vejo, ao redor do leito, cardiologista, neurologista, enfermagem, residente. Como não havia espaço, pergunto pelos familiares e respondem que ele está só com um amigo que o trouxe. Vou procurar esse amigo para obter informações sobre o paciente e tenho como resposta que o acompanhante é amigo há pouco tempo e não sabe o que ocorreu.
Enquanto aguardo um espaço com o paciente vou lendo a papeleta admissional: Fred, 26 anos, chegou ao P.S. inconsciente e, como já era cliente do hospital, consta que é portador de miocardiopatia hipertrófica.
Quando percebo que a sala já se esvaziara e me encaminho para ela, ouço um colega dizer: “Oh Regina, vê se você consegue entender o que esse pitizento está falando!...”.
Num momento de urgência, tenso e temeroso pelo que se passa, o doente geralmente se depara com o desconhecido e sente-se profundamente fragilizado, ou mesmo, em alguns casos, perseguido, reagindo muitas vezes com grande agressividade. A hospitalização é frequentemente vivida em meio à ameaça de morte, caixa de ressonância onde repercutem as vicissitudes da demanda dos que sofrem – de imediato - na instituição hospitalar - a carência material e afetiva, o abandono, a solidão, a miséria humana da decadência física, que se apresenta desde os primeiros contatos.
Aproximando do leito vejo um rapaz encolhido, sonolento (havia sido sedado) e balbuciando algumas palavras incompreensíveis para mim: KORO, MI NE VOLAS MORTI. Digo a ele quem sou, que estarei ali ao seu lado para tentar ajudá-lo e que não estava compreendendo o que tentava me dizer. Só depois do efeito da sedação, quando acordasse, poderia tentar uma intervenção. Estou saindo do quarto quando ouço: ESPERO.
Respondo que esperarei o tempo que for preciso para conversar, mas naquele momento, ele iria dormir e logo conversaríamos. Fred esboça um sorriso tímido e fecha totalmente seus olhos.
Agindo com urgência, o médico pode alcançar eficácia em seu resultado sem levar em conta a causa, tratando o que está manifesto sem tratar a origem do mal, que poderá ser cuidada depois da urgência. No que concerne à psicanálise, inverte-se o procedimento: o psicanalista, na urgência, estabelece questões cuja finalidade é reintroduzir a dimensão do tempo e a consideração da causa. Reinstaura, assim, a possibilidade de o sujeito dizer o que desencadeou essa necessidade urgente de se livrar de uma dor, de um sofrimento, de uma angústia avassaladora ou mesmo de uma situação incômoda.
O psicanalista quer propor ao paciente fazer falar a urgência, colocá-la em palavras, apreciar o que as palavras transportam. O analista forma parte da urgência se quer que o paciente faça com ela um sintoma e não a expressão de uma panacéia. Intervém interrogando a situação. Trata-se aqui de coordenadas inversas: a ética médica exige que se selecionem as coisas por fazer, simplificando a situação, enquanto que a ética da psicanálise se interessa pela complexidade desta, multiplicando as coisas por dizer.
Volto para ver Fred que, apressadamente, começa a falar que já está bem, que precisa ir embora, que sua mãe está sozinha em casa, que o susto já passou... Vagarosamente repito para ele: ESPERO, KORO, MI NE VOLAS MORTI... Fred começa a chorar e a dizer.
Nietzche, ao meditar sobre uma dolorosa experiência de enfermidade pela qual passara, disse:
“... é assim que, agora, aquele longo período de doença me aparece: sinto como se, nele, eu tivesse descoberto de novo a vida, descobrindo a mim mesmo inclusive. Provei todas as coisas boas, mesmo as pequenas, de uma forma como os outros não as provam com facilidade. E transformei, então, minha vontade de saúde e de viver numa filosofia”.
O psicanalista, na urgência, trabalha para mudar o vetor de passagem ao ato eventual, para provocar o tempo de compreender, criando uma nova situação. Tentamos romper a trajetória que pressentimos, e que o sujeito afasta de um modo impulsivo, para que, nesse curto-circuito entre o instante de ver e o momento de concluir, possa ser instaurado o tempo de compreender.
A urgência em si seria não querer enfrentar o tempo de compreender, em que se convive com os sentimentos, com os pensamentos e com o acontecimento. Para evitar isso, submete-se à urgência de passar logo à frente, participar de uma atividade atrás da outra, sem intervalo.
Fred fala Esperanto, a língua universal, aquele que tem esperança. Suas palavras incompreensíveis, confusas ou “pitizentas”, eram a ESPERO=esperança de tudo que trazia através de seu sintoma e em seu KORO=coração.
O lugar e a ocasião, que asseguram senso de oportunidade às nossas intervenções, em princípio não deveriam estar marcados por mera segmentação das pessoas a partir de rótulos tais como queimados, cardíacos, politraumatizados, isolando grupos ou criando identificações e ou identidades. Como nos ensina Drumond “o problema não é inventar. É ser inventado hora após hora e nunca ficar pronta nossa edição convincente”.
Assim, respondi à pergunta do meu filho, dizendo que, como o analista não recua diante do real, deve transformar a urgência em possibilidade de fazer o sujeito falar de seu sofrimento, já que em sua posição ética o psicanalista sabe que o tratamento da psicanálise não escolhe lugar.
Venho aprendendo no hospital o que é a morte, a dor, a vida, a pulsão desregrada, como aprendo também que uma palavra ou frase escutada por acaso faz efeito no só depois: MI NE VOLAS MORTI=EU NÃO QUERO MORRER! Que há, sempre, um sujeito que age a partir de sua singularidade e não de leis gerais, mesmo falando uma língua universal.
*Conferência apresentada no V Congresso Brasileiro de Psicologia Hospitalar/Porto Alegre-RS

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