Não importa onde estamos, numa mesa de bar ou no divã do analista, nossa mente nunca para e nossos medos e desejos nunca nos abandonam. Nem por um instante nos separamos do que realmente somos e, por mais difícil que seja, não controlamos cem por cento nossas atitudes. Se Freud, após 40 anos de estudo da mente humana, continuou com várias dúvidas sobre o ser humano, quem sou eu ou você para julgar as “crises histéricas” da melhor amiga? Só Freud explica!?!
Coisas simples que todos vivemos,pensamos,sentimos e nem sempre conseguimos partilhar. Assuntos, temas, extraídos da minha experiência clínica e do meu cotidiano. Em alguns você pensará: tô fora... Em outros: tô dentro...

quinta-feira, 7 de março de 2013

MI NE VOLAS MORTI - PARTE II

Sou chamada para atender no P.S. um paciente que “não fala coisa com coisa, está confuso, agitado”.Chego e vejo, ao redor do leito, cardiologista, neurologista, enfermagem, residente. Como não havia espaço, pergunto pelos familiares e respondem que ele está só com um amigo que o trouxe. Vou procurar esse amigo para obter informações sobre o paciente e tenho como resposta que o acompanhante é amigo há pouco tempo e não sabe o que ocorreu.
Enquanto aguardo um espaço com o paciente vou lendo a papeleta admissional: Fred, 26 anos, chegou ao P.S. inconsciente e, como já era cliente do hospital, consta que é portador de miocardiopatia hipertrófica.
Quando percebo que a sala já se esvaziara e me encaminho para ela, ouço um colega dizer: “Oh Regina, vê se você consegue entender o que esse pitizento está falando!...”.Num momento de urgência, tenso e temeroso pelo que se passa, o doente geralmente se depara com o desconhecido e sente-se profundamente fragilizado, ou mesmo, em alguns casos, perseguido, reagindo muitas vezes com grande agressividade. A hospitalização é frequentemente vivida em meio à ameaça de morte, caixa de ressonância onde repercutem as vicissitudes da demanda dos que sofrem – de imediato - na instituição hospitalar - a carência material e afetiva, o abandono, a solidão, a miséria humana da decadência física, que se apresenta desde os primeiros contatos.
Aproximando do leito vejo um rapaz encolhido, sonolento (havia sido sedado) e balbuciando algumas palavras incompreensíveis para mim: KORO, MI NE VOLAS MORTI. Digo a ele quem sou, que estarei ali ao seu lado para tentar ajudá-lo e que não estava compreendendo o que tentava me dizer. Só depois do efeito da sedação, quando acordasse, poderia tentar uma intervenção. Estou saindo do quarto quando ouço: ESPERO.
Respondo que esperarei o tempo que for preciso para conversar, mas naquele momento, ele iria dormir e logo conversaríamos. Fred esboça um sorriso tímido e fecha totalmente seus olhos.
Agindo com urgência, o médico pode alcançar eficácia em seu resultado sem levar em conta a causa, tratando o que está manifesto sem tratar a origem do mal, que poderá ser cuidada depois da urgência. No que concerne à psicanálise, inverte-se o procedimento: o psicanalista, na urgência, estabelece questões cuja finalidade é reintroduzir a dimensão do tempo e a consideração da causa. Reinstaura, assim, a possibilidade de o sujeito dizer o que desencadeou essa necessidade urgente de se livrar de uma dor, de um sofrimento, de uma angústia avassaladora ou mesmo de uma situação incômoda.
O psicanalista quer propor ao paciente fazer falar a urgência, colocá-la em palavras, apreciar o que as palavras transportam. O analista forma parte da urgência se quer que o paciente faça com ela um sintoma e não a expressão de uma panacéia. Intervém interrogando a situação. Trata-se aqui de coordenadas inversas: a ética médica exige que se selecionem as coisas por fazer, simplificando a situação, enquanto que a ética da psicanálise se interessa pela complexidade desta, multiplicando as coisas por dizer.
Volto para ver Fred que, apressadamente, começa a falar que já está bem, que precisa ir embora, que sua mãe está sozinha em casa, que o susto já passou... Vagarosamente repito para ele: ESPERO, KORO, MI NE VOLAS MORTI... Fred começa a chorar e a dizer.
Nietzche, ao meditar sobre uma dolorosa experiência de enfermidade pela qual passara, disse:
“... é assim que, agora, aquele longo período de doença me aparece: sinto como se, nele, eu tivesse descoberto de novo a vida, descobrindo a mim mesmo inclusive. Provei todas as coisas boas, mesmo as pequenas, de uma forma como os outros não as provam com facilidade. E transformei, então, minha vontade de saúde e de viver numa filosofia”.O psicanalista, na urgência, trabalha para mudar o vetor de passagem ao ato eventual, para provocar o tempo de compreender, criando uma nova situação. Tentamos romper a trajetória que pressentimos, e que o sujeito afasta de um modo impulsivo, para que, nesse curto-circuito entre o instante de ver e o momento de concluir, possa ser instaurado o tempo de compreender.
A urgência em si seria não querer enfrentar o tempo de compreender, em que se convive com os sentimentos, com os pensamentos e com o acontecimento. Para evitar isso, submete-se à urgência de passar logo à frente, participar de uma atividade atrás da outra, sem intervalo.
Fred fala Esperanto, a língua universal, aquele que tem esperança. Suas palavras incompreensíveis, confusas ou “pitizentas”, eram a ESPERO=esperança de tudo que trazia através de seu sintoma e em seu KORO=coração.
O lugar e a ocasião, que asseguram senso de oportunidade às nossas intervenções, em princípio não deveriam estar marcados por mera segmentação das pessoas a partir de rótulos tais como queimados, cardíacos, politraumatizados, isolando grupos ou criando identificações e ou identidades. Como nos ensina Drumond “o problema não é inventar. É ser inventado hora após hora e nunca ficar pronta nossa edição convincente”.Assim, respondi à pergunta do meu filho, dizendo que, como o analista não recua diante do real, deve transformar a urgência em possibilidade de fazer o sujeito falar de seu sofrimento, já que em sua posição ética o psicanalista sabe que o tratamento da psicanálise não escolhe lugar.
Venho aprendendo no hospital o que é a morte, a dor, a vida, a pulsão desregrada, como aprendo também que uma palavra ou frase escutada por acaso faz efeito no só depois: MI NE VOLAS MORTI=EU NÃO QUERO MORRER! Que há, sempre, um sujeito que age a partir de sua singularidade e não de leis gerais, mesmo falando uma língua universal!
*Conferência apresentada no V Congresso Brasileiro de Psicologia Hospitalar/Porto Alegre-RS

16 comentários:

  1. Rê... é bão te ler a I, II e se tiver III... até mil... bejO

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  2. Daria um belo enredo para um filme esse encontro tão bonito. Certamente, ao acordar, Fred deve ter se sentido aliviado por contar com o seu apoio, doutora. Por que é possível, ainda que aprendendo a lidar com a morte e feiuras da alma, ainda assim é possível manter-se humano.

    A conferência deve ter sido uma belezura.

    Beijo, beijo!

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  3. Rê, querida, por tudo que li aqui deu pra conhecer esse lado profisional que mora em ti e que é tão forte. Esse teu lado mais que humano, posto que tu estudou a ciência da alma, cara mia.

    A empatia é um presente, nem todo mundo tem, mas os "ajudadores de almas feito tu", a cultivam todos os dias porque nasceram com ela.

    Saber doar-se é tão lindo... e tão...BOM!

    Fquei muito emocionada com tua narrativa. Oxalá houvessem psicólogos/psicanalistas presentes em pronto-socorros da vida.

    Tua explanação deixa isso nas entrelinhas.

    Meu afeto Rê, cuidadora de almas.
    mile baci

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  5. Estava ansiosa como uma criança.
    Parte II
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    Surpresa e feliz com a narrativa do belo REencontro.
    Que bom seria se em todos os momentos cruciais, em um leito de hospital, pudessemos ter um amigo no profissional que nos atende.
    E mesmo que balbuciando conseguir falar.
    Mi ĝojas renkonti vin. – Eu estou feliz em te encontrar.
    A sua dedicação supera qualquer problema de linguística.
    Beijos
    Wilma
    www.cancerdemamamulherdepeito@blogspot.com

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  6. Re,
    sinceramente nem sei o que dizer!
    bjs
    Jussara

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  7. Encantada com esta tua partilha, em que está presente o saber, o cuidar e a ciência do saber esperar. "Tratar" do ser no seu todo, de forma holística, é um passo que devia ser trilhado por todos os que têm a seu cuidado a pessoa, sobretudo a sua alma...

    Bjuzz, amiga RÊ :)

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  8. Puxa, que lindo isso,Regina!!! Valeu e impressiona esse trabalho,não? beijos, feliz nosso dia! chica

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  9. Que profunda emoção, cara! Vou ter que aprender esperanto, a língua da esperança! Ela anda meio sumida...
    Linda essa história. Choro. A emoção é proporcional à beleza. Beijos no fundo de sua alma amorosa. Angelinha
    http://noticiasdacozinha.blogspot.com

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  10. És mulher! És todo um mundo!
    És a árvore da vida
    Enraizada em chão fecundo
    Tua fronde florescida
    Já buscando o céu profundo
    Já de um poeta vagabundo
    Em versos enaltecida!


    Hoje é na base da tesoura e cola.
    Beijos!
    PS: Belíssima narrativa.

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  11. Olá, RÊ!

    Imagino que não deve ser nada fácil conseguir desviar a mente de alguém entrado de urgência no hospital, do medo da morte.E conduzir-lhe o pensamento para o campo do optimismo, levando-o a acreditar e ter esperança:Coisa que às vezes será tão importante como o próprio tratamento.
    Eu, confesso, acho que não seria capaz de fazer profissão do lidar com o sofrimento, de tão exigente que tal é...

    Gostei de ler.

    Bom fim de semana; beijinhos amigos.
    Vitor

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  12. Olá, Regina!
    Um garoto tão jovem... e o seu esperanto.
    Sempre tive curiosidade por esta língua universal criada por Lázaro Zamenhoff.
    Abraço interiorano.

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  13. Olá Regina, Amei seu blog, mas vou voltar com mais calmo. AMO psicologia e tenho algumas teorias muito particulares. Adorei esses dois textos e o que li rapidamente além deles. Parabéns. E se vc que estuda o ser humano há 40 anos ainda tem duvidas, o que dirá eu que, apesar de ter algo na formação acadêmica, nem chego perto disso. Mais curiosidade mesmo. rs
    Sempre digo que o problema não é religião, política, torcida organizada, adolescencia. O problema são os seres humanos que representam esses grupos, ou seja: nós mesmas! =0
    Beijo grande e espero que sua 'raiva' da China já tenha passado. Também li o livro que vc citou e é triste. Mas te repito o que disse acima. Os seres humanos são os maiores causadores da pp desgraça. A Cultura Chinesa é linda, acredite. =]

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  14. Que dez e melhor ainda fazer o que se gosta, beijo Lisettte.

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  15. Ai, Re, eu só digo uma coisa: Se um dia eu precisar de cuidados assim, que eu caia nas mãos bondosas e competentes como as suas.
    Obrigada por dividir conosco esta lida tão complicada e diferente do nosso dia a dia.
    um beijo grande carioca

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