Sou chamada para atender no P.S. um paciente que “não fala coisa com coisa, está confuso, agitado”.
Chego e vejo, ao redor do leito, cardiologista, neurologista, enfermagem, residente. Como não havia espaço, pergunto pelos familiares e respondem que ele está só com um amigo que o trouxe. Vou procurar esse amigo para obter informações sobre o paciente e tenho como resposta que o acompanhante é amigo há pouco tempo e não sabe o que ocorreu.
Chego e vejo, ao redor do leito, cardiologista, neurologista, enfermagem, residente. Como não havia espaço, pergunto pelos familiares e respondem que ele está só com um amigo que o trouxe. Vou procurar esse amigo para obter informações sobre o paciente e tenho como resposta que o acompanhante é amigo há pouco tempo e não sabe o que ocorreu.
Enquanto aguardo um espaço com o paciente vou lendo a papeleta admissional: Fred, 26 anos, chegou ao P.S. inconsciente e, como já era cliente do hospital, consta que é portador de miocardiopatia hipertrófica.
Quando percebo que a sala já se esvaziara e me encaminho para ela, ouço um colega dizer: “Oh Regina, vê se você consegue entender o que esse pitizento está falando!...”.
Num momento de urgência, tenso e temeroso pelo que se passa, o doente geralmente se depara com o desconhecido e sente-se profundamente fragilizado, ou mesmo, em alguns casos, perseguido, reagindo muitas vezes com grande agressividade. A hospitalização é frequentemente vivida em meio à ameaça de morte, caixa de ressonância onde repercutem as vicissitudes da demanda dos que sofrem – de imediato - na instituição hospitalar - a carência material e afetiva, o abandono, a solidão, a miséria humana da decadência física, que se apresenta desde os primeiros contatos.
Aproximando do leito vejo um rapaz encolhido, sonolento (havia sido sedado) e balbuciando algumas palavras incompreensíveis para mim: KORO, MI NE VOLAS MORTI. Digo a ele quem sou, que estarei ali ao seu lado para tentar ajudá-lo e que não estava compreendendo o que tentava me dizer. Só depois do efeito da sedação, quando acordasse, poderia tentar uma intervenção. Estou saindo do quarto quando ouço: ESPERO.
Respondo que esperarei o tempo que for preciso para conversar, mas naquele momento, ele iria dormir e logo conversaríamos. Fred esboça um sorriso tímido e fecha totalmente seus olhos.
Agindo com urgência, o médico pode alcançar eficácia em seu resultado sem levar em conta a causa, tratando o que está manifesto sem tratar a origem do mal, que poderá ser cuidada depois da urgência. No que concerne à psicanálise, inverte-se o procedimento: o psicanalista, na urgência, estabelece questões cuja finalidade é reintroduzir a dimensão do tempo e a consideração da causa. Reinstaura, assim, a possibilidade de o sujeito dizer o que desencadeou essa necessidade urgente de se livrar de uma dor, de um sofrimento, de uma angústia avassaladora ou mesmo de uma situação incômoda.
O psicanalista quer propor ao paciente fazer falar a urgência, colocá-la em palavras, apreciar o que as palavras transportam. O analista forma parte da urgência se quer que o paciente faça com ela um sintoma e não a expressão de uma panacéia. Intervém interrogando a situação. Trata-se aqui de coordenadas inversas: a ética médica exige que se selecionem as coisas por fazer, simplificando a situação, enquanto que a ética da psicanálise se interessa pela complexidade desta, multiplicando as coisas por dizer.
Volto para ver Fred que, apressadamente, começa a falar que já está bem, que precisa ir embora, que sua mãe está sozinha em casa, que o susto já passou... Vagarosamente repito para ele: ESPERO, KORO, MI NE VOLAS MORTI... Fred começa a chorar e a dizer.
Quando percebo que a sala já se esvaziara e me encaminho para ela, ouço um colega dizer: “Oh Regina, vê se você consegue entender o que esse pitizento está falando!...”.
Num momento de urgência, tenso e temeroso pelo que se passa, o doente geralmente se depara com o desconhecido e sente-se profundamente fragilizado, ou mesmo, em alguns casos, perseguido, reagindo muitas vezes com grande agressividade. A hospitalização é frequentemente vivida em meio à ameaça de morte, caixa de ressonância onde repercutem as vicissitudes da demanda dos que sofrem – de imediato - na instituição hospitalar - a carência material e afetiva, o abandono, a solidão, a miséria humana da decadência física, que se apresenta desde os primeiros contatos.
Aproximando do leito vejo um rapaz encolhido, sonolento (havia sido sedado) e balbuciando algumas palavras incompreensíveis para mim: KORO, MI NE VOLAS MORTI. Digo a ele quem sou, que estarei ali ao seu lado para tentar ajudá-lo e que não estava compreendendo o que tentava me dizer. Só depois do efeito da sedação, quando acordasse, poderia tentar uma intervenção. Estou saindo do quarto quando ouço: ESPERO.
Respondo que esperarei o tempo que for preciso para conversar, mas naquele momento, ele iria dormir e logo conversaríamos. Fred esboça um sorriso tímido e fecha totalmente seus olhos.
Agindo com urgência, o médico pode alcançar eficácia em seu resultado sem levar em conta a causa, tratando o que está manifesto sem tratar a origem do mal, que poderá ser cuidada depois da urgência. No que concerne à psicanálise, inverte-se o procedimento: o psicanalista, na urgência, estabelece questões cuja finalidade é reintroduzir a dimensão do tempo e a consideração da causa. Reinstaura, assim, a possibilidade de o sujeito dizer o que desencadeou essa necessidade urgente de se livrar de uma dor, de um sofrimento, de uma angústia avassaladora ou mesmo de uma situação incômoda.
O psicanalista quer propor ao paciente fazer falar a urgência, colocá-la em palavras, apreciar o que as palavras transportam. O analista forma parte da urgência se quer que o paciente faça com ela um sintoma e não a expressão de uma panacéia. Intervém interrogando a situação. Trata-se aqui de coordenadas inversas: a ética médica exige que se selecionem as coisas por fazer, simplificando a situação, enquanto que a ética da psicanálise se interessa pela complexidade desta, multiplicando as coisas por dizer.
Volto para ver Fred que, apressadamente, começa a falar que já está bem, que precisa ir embora, que sua mãe está sozinha em casa, que o susto já passou... Vagarosamente repito para ele: ESPERO, KORO, MI NE VOLAS MORTI... Fred começa a chorar e a dizer.
Nietzche, ao meditar sobre uma dolorosa experiência de enfermidade pela qual passara, disse:
“... é assim que, agora, aquele longo período de doença me aparece: sinto como se, nele, eu tivesse descoberto de novo a vida, descobrindo a mim mesmo inclusive. Provei todas as coisas boas, mesmo as pequenas, de uma forma como os outros não as provam com facilidade. E transformei, então, minha vontade de saúde e de viver numa filosofia”.
O psicanalista, na urgência, trabalha para mudar o vetor de passagem ao ato eventual, para provocar o tempo de compreender, criando uma nova situação. Tentamos romper a trajetória que pressentimos, e que o sujeito afasta de um modo impulsivo, para que, nesse curto-circuito entre o instante de ver e o momento de concluir, possa ser instaurado o tempo de compreender.
A urgência em si seria não querer enfrentar o tempo de compreender, em que se convive com os sentimentos, com os pensamentos e com o acontecimento. Para evitar isso, submete-se à urgência de passar logo à frente, participar de uma atividade atrás da outra, sem intervalo.
Fred fala Esperanto, a língua universal, aquele que tem esperança. Suas palavras incompreensíveis, confusas ou “pitizentas”, eram a ESPERO=esperança de tudo que trazia através de seu sintoma e em seu KORO=coração.
O lugar e a ocasião, que asseguram senso de oportunidade às nossas intervenções, em princípio não deveriam estar marcados por mera segmentação das pessoas a partir de rótulos tais como queimados, cardíacos, politraumatizados, isolando grupos ou criando identificações e ou identidades. Como nos ensina Drumond “o problema não é inventar. É ser inventado hora após hora e nunca ficar pronta nossa edição convincente”.
Assim, respondi à pergunta do meu filho, dizendo que, como o analista não recua diante do real, deve transformar a urgência em possibilidade de fazer o sujeito falar de seu sofrimento, já que em sua posição ética o psicanalista sabe que o tratamento da psicanálise não escolhe lugar.
Venho aprendendo no hospital o que é a morte, a dor, a vida, a pulsão desregrada, como aprendo também que uma palavra ou frase escutada por acaso faz efeito no só depois: MI NE VOLAS MORTI=EU NÃO QUERO MORRER! Que há, sempre, um sujeito que age a partir de sua singularidade e não de leis gerais, mesmo falando uma língua universal.
“... é assim que, agora, aquele longo período de doença me aparece: sinto como se, nele, eu tivesse descoberto de novo a vida, descobrindo a mim mesmo inclusive. Provei todas as coisas boas, mesmo as pequenas, de uma forma como os outros não as provam com facilidade. E transformei, então, minha vontade de saúde e de viver numa filosofia”.
O psicanalista, na urgência, trabalha para mudar o vetor de passagem ao ato eventual, para provocar o tempo de compreender, criando uma nova situação. Tentamos romper a trajetória que pressentimos, e que o sujeito afasta de um modo impulsivo, para que, nesse curto-circuito entre o instante de ver e o momento de concluir, possa ser instaurado o tempo de compreender.
A urgência em si seria não querer enfrentar o tempo de compreender, em que se convive com os sentimentos, com os pensamentos e com o acontecimento. Para evitar isso, submete-se à urgência de passar logo à frente, participar de uma atividade atrás da outra, sem intervalo.
Fred fala Esperanto, a língua universal, aquele que tem esperança. Suas palavras incompreensíveis, confusas ou “pitizentas”, eram a ESPERO=esperança de tudo que trazia através de seu sintoma e em seu KORO=coração.
O lugar e a ocasião, que asseguram senso de oportunidade às nossas intervenções, em princípio não deveriam estar marcados por mera segmentação das pessoas a partir de rótulos tais como queimados, cardíacos, politraumatizados, isolando grupos ou criando identificações e ou identidades. Como nos ensina Drumond “o problema não é inventar. É ser inventado hora após hora e nunca ficar pronta nossa edição convincente”.
Assim, respondi à pergunta do meu filho, dizendo que, como o analista não recua diante do real, deve transformar a urgência em possibilidade de fazer o sujeito falar de seu sofrimento, já que em sua posição ética o psicanalista sabe que o tratamento da psicanálise não escolhe lugar.
Venho aprendendo no hospital o que é a morte, a dor, a vida, a pulsão desregrada, como aprendo também que uma palavra ou frase escutada por acaso faz efeito no só depois: MI NE VOLAS MORTI=EU NÃO QUERO MORRER! Que há, sempre, um sujeito que age a partir de sua singularidade e não de leis gerais, mesmo falando uma língua universal.
*Conferência apresentada no V Congresso Brasileiro de Psicologia Hospitalar/Porto Alegre-RS
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